Corrupção sexual: condicionar prestação de serviço a sexo pode virar crime
06/07/2022
Imagine esta situação: uma mulher vai até uma agência bancária e o gerente diz que só facilitaria a documentação de um empréstimo se ela mantivesse relações sexuais com ele. Para dar uma resposta a um caso como este na esfera criminal, a Câmara dos Deputados discute um projeto para tipificar a conduta de corrupção ou extorsão sexual, ou “sextortion”, do inglês, como crime. O projeto de lei já foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), primeiro passo para a tramitação avance. Agora, deve ser votado entre os deputados.
Se aprovado, vai se tornar uma lei que estabelece pena de dois a dez anos de prisão, dependendo se o ato foi efetivado ou só oferecido. A proposta quer suprir uma lacuna da legislação atual. Hoje, o Código Penal prevê o assédio sexual com uma leitura restrita a situações em que existe uma relação de trabalho e onde o autor está acima na relação de hierarquia. Universa conversou com advogadas para entender o debate travado no Congresso Nacional.
Qual a diferença entre extorsão sexual e assédio?
A proposta de lei, dos deputados Tábata Amaral (PSB-SP) e Felipe Rigoni (PSL-ES), quer criminalizar condutas que não necessariamente estejam condicionadas a uma relação de trabalho, mas a uma prestação de serviço. Seria punido, portanto, o abuso de poder exercido por alguém em situação de autoridade para a obtenção de um benefício sexual. Por exemplo, hoje, um professor que condiciona a aprovação da aluna a manter relações sexuais com ele não pode não responder ao crime de assédio sexual — isso porque, embora haja uma relação de poder estabelecida, não há uma relação de trabalho.
Quem explica essa diferença é a advogada criminalista Amanda Bessoni, doutora em Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).
“O assédio sexual tem uma restrição ao âmbito profissional. De fato, não consta no Código Penal uma previsão tão específica quanto essa de ‘sextortion’. Hoje, o condicionamento de um dever de ofício a um ato sexual poderia se enquadrar em outros crimes, como a concussão, que é um delito contra administração pública. Mas não há nada específico com relação a atos libidinosos forçados.”
Um levantamento feito pela Transparência Internacional, em 2019, mostra que, no Brasil, 20% das pessoas já sofreram ou conhecem alguém que sofreu esse tipo de extorsão. O estudo aponta ainda que a maioria das vítimas são mulheres.
Formada em Gestão de Políticas Públicas, Nicole Verillo, gerente de Apoio e Incidência Anticorrupção da organização no Brasil, afirma que os dados ainda são subestimados. “Existem alguns estudos e nós iniciamos essa pesquisa em alguns levantamentos sobre extorsão sexual globais e na América Latina. O resultado que encontramos é que uma a cada cinco foi ou conhece alguém que foi vítima de extorsão quando buscaram algum serviço público”, diz.
Por isso, ela considera que o projeto de tipificação da extorsão sexual como crime é “extremamente relevante”. “A extorsão sexual ocorre quando a corrupção e a exploração sexual se cruzam. E quase sempre as mulheres são o alvo principal. Em vez de serem solicitadas a pagar um suborno em dinheiro para ter acessos a serviço básicos, como o acesso à Justiça ou qualquer garantia de direito, elas são pressionadas a pagar com seus próprios corpos”, afirma Nicole.
Ela cita como casos que a Transparência Internacional monitora: policiais que extorquem presidiárias para terem acesso a direitos como banho de sol; juízes que condicionam uma decisão favorável ao fornecimento de um ato sexual; servidores públicos que solicitam benefícios sexuais em troca de determinado serviço, como uma vaga em escola pública.
Para a advogada Amanda Bessoni, em vez de criar tipos penais, os parlamentares poderiam revisar a redação do crime de assédio sexual, para que o texto seja menos restritivo. Isso também evitaria dúvidas no momento da aplicação da lei e das penas.
“Pode haver confusão com a aplicação do crime em um caso complexo, já que a previsão de pena para ‘sextortion’ é mais dura do que a do assédio sexual. A reformulação da lei para que ela se enquadre a mudanças da realidade é sempre bem-vinda, mas tem que ser observada a racionalidade que o sistema já possui. Essa oportunidade poderia ser de eliminar as controvérsias do assédio sexual, por exemplo”, opina a advogada criminalista.
A advogada Maíra Recchia, especializada em direitos da mulher, explica que o projeto em discussão não tem a ver com ameaças de vazamento de nudes. O chamando “revenge porn”, ou pornografia de vingança, que significa ameaçar alguém a divulgar suas fotos íntimas, já é crime desde 2018. “No ‘sextortion’, se condiciona a prestação de um serviço de funcionário público a uma relação sexual. Já o ‘revenge porn’ é a ameaça de divulgação de fotos íntimas, geralmente após um relacionamento.”
Lei trabalhista já prevê interpretação ampla do assédio sexual
A advogada Ursula Cohim Mauro, mestre em Direito do Trabalho pela USP, explica que a Justiça do Trabalho, diferentemente da esfera criminal, já tem uma leitura mais ampla do que é o assédio sexual.
Nas relações trabalhistas, sejam elas pública ou privada, o conceito de assédio pode ser aplicado independentemente da hierarquia entre autor e vítima.
“Na situação envolvendo a Caixa Econômica Federal, por exemplo, as vítimas relatam, nas notícias divulgadas pela imprensa, que havia uma cultura estrutural na empresa que permitiu o assédio, não necessariamente apenas entre chefes e seus subordinados. A legislação criminal não vai atingir uma situação em que não exista essa relação de poder ou entre mesmos cargos, já a trabalhista sim”, explica Ursula.
“A Justiça do Trabalho tem uma interpretação para fins de indenização, e o o assédio sexual é dividido em duas categorias: por chantagem, quando há nível hierárquico superior e a vítima consegue alguma coisa na carreira, como ser promovida’; por intimidação, quando a mulher se sente intimidada pela conduta do assediador não importa o nível dos cargos.”
Caso a lei de ‘sextortion’ seja aprovada, portanto, não vai reverberar em mudanças na legislação trabalhista, apenas na esfera penal, afirma a advogada. “A Justiça do Trabalho só pode apurar fatos entre empregado e empregador, não apura entre prestadores de serviço e clientes, e já puniria a empresa por uma situação de coação por atos sexuais.”
Publicado em Uol
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