RETROSPECTIVA 2021: MUDANÇAS ATÉ NO PACATO DIREITO SOCIETÁRIO
29/11/2021
Alessandro Orizzo, Pós-Graduado em Contratos Internacionais e Graduado em Direito pela PUC – SP. LL.M. em Direito Societário pelo Insper (IBMEC), com extensão no Duke Geneva Institute in Transnational Law – Université de Genève. Sócio de Orizzo Marques Advogados.
Muito se falou ao longo de 2021 sobre a reforma tributária e a reforma administrativa, sobre a PEC dos precatórios, sobre PECs relacionadas às mudanças no orçamento, alterações nos programas de redistribuição de renda etc. São, em parte, assuntos recorrentes nos noticiários de economia, legislação e política – se não estão lá todos os anos, pelo menos a cada quatro ressurgem.
Em 2021, apesar de muito barulho, poucas dessas mudanças foram concluídas.
Em outra frente, com muito menos destaque junto ao grande público, o pacato direito societário, que passa por alterações (normalmente nem tão substanciais assim) a cada 5 ou 10 anos, foi objeto de diversas atualizações legislativas em 2021, que relatamos a seguir:
Simplificação na abertura de empresas: Em 2019 foi editada a MP da Liberdade Econômica, convertida na Lei nº. 13.874, que trazia um conceito de desburocratização do empreendedorismo, reduzindo (ou em alguns casos até eliminando) burocracias regulatórias para a abertura de empresas com baixo grau de risco. Este ano, a MP do Ambiente de Negócios, convertida na Lei nº. 14.195, deu eficácia a dispositivo da MP da Liberdade Econômica, determinando a fonte de classificação de risco das atividades econômicas – Resolução a ser editada pelo Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (CGSIM).
Competência do DREI e desburocratização das Juntas Comerciais: A MP do Ambiente de Negócios ainda trouxe outras alterações no sentido de simplificar e desburocratizar o registro de empresas, ampliando as competências do DREI para estudar e implementar tais medidas, além de já implementar algumas, como, por exemplo: proibir a exigência de reconhecimento de firma no arquivamento de documentos e permitir a certificação de cópias por advogados e contadores.
Voto plural: Sem dúvida a mais relevante alteração na legislação societária ocorrida nos últimos tempos, a implementação do voto plural no Brasil é a quebra de um paradigma (vigente desde 1940!) [1]. Pelo mecanismo de voto plural, quebra-se a regra de “1 ações, 1 voto”, e permite-se que seja atribuída a determinada classe de ações até 10 votos por ação. Ademais, diversos artigos da lei tiveram sua redação harmonizada com o novo dispositivo, para permitir o efetivo controle da sociedade com base no voto plural (por exemplo, o quórum geral para instalação de assembleias passa a ser 1/4 dos votos, e não mais 1/4 do capital com direito a voto). A consequência jurídica é que um acionista poderá manter o controle da sociedade, mesmo detendo participação inferior a 10% da sociedade. A consequência prática (indo direto ao ponto) é que os fundadores das startups não precisaram mais recorrer a estruturas jurídicas no exterior para manter o controle de suas companhias frente aos vultosos aportes de investidores (talvez seja ainda necessário recorrer às estruturas offshore por outras razões). Há muitas críticas ao voto plural tal como instituído pela MP do Ambiente de Negócios – há quem julgue que a autorização legislativa para o voto plural foi pouca (prazo máximo de validade, impossibilidade de adoção inicial por companhias que já abriram o capital etc.), e há quem julgue que a mudança prejudica os direitos dos minoritários. Seja como for, o assunto será tema de debates e estudos pelos próximos anos.
Governança corporativa: A MP do Ambiente de negócios proibiu que os cargos de presidente do Conselho de Administração e presidente da Companhia sejam cumulados pelo mesmo executivo, e determinou a exigência de conselheiro independente para todas as companhias abertas – temas de governança que, mesmo não sendo exigências legais, eram, em parte, imposições de mercado. Há ainda a previsão de que o presidente do Conselho de Administração pode ser escolhido pelo próprio Conselho, a previsão expressa de criação de quórum qualificado para deliberações do Conselho e da possibilidade de criação de vaga no Conselho para representante dos empregados. Também tratando de governança, o Marco Legal das Startups eliminou a exigência de pelo menos dois diretores em sociedades anônimas.
Extinção das EIRELI: Sem utilidade prática desde 2019, quando a MP da Liberdade Econômica introduziu a Sociedade Limitada Unipessoal, as EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada foi extinta pela MP do Ambiente de Negócios, constando ali determinação de que todas as EIRELI serão, automática e independentemente de qualquer outra providência, consideradas Sociedades Limitadas Unipessoais.
Escritórios virtuais: A MP do Ambiente de Negócios também regulariza a utilização de escritórios virtuais, ou do domicílio de um dos sócios, como endereço de registro da sede empresarial, ressalvando que tal endereço não necessariamente se confunde com o endereço de exercício das atividades (e que o endereço de exercício das atividades deve continuar observando as restrições de zoneamento dos municípios). Trata, portanto, de respaldar prática já comum a profissionais liberais, pequenos empreendedores (principalmente que operam comércios e serviços por meio de plataformas virtuais e sem um estabelecimento para atendimento ao público), corroborando a desburocratização que muitas vezes era imposta por estados e municípios.
Valores mobiliários: A MP do Ambiente de Negócios ainda instituiu regras que permitem a sociedade limitadas emitir Notas Comerciais sob a forma escritural, deixando a cargo de regulamentação as regras quanto à oferta e negociação desses títulos em mercados organizados. A mudança, a nosso ver, encerra, por via alternativa, uma antiga discussão sobre as sociedades limitadas poderem ou não emitir debêntures: tal discussão perde relevância, visto que sociedades limitadas podem emitir notas comerciais, que têm apelo prático muito parecido ao de debêntures. No mais, o Marco Legal das Startups, visando fomentar o acesso dessas empresas ao mercado de capitais, alterou a Lei das S.A. para permitir que a CVM reduza ou flexibilize determinadas barreiras regulatórias para empresas de menor porte.
Startups: Em 2021 tivemos ainda o Marco Legal das Startups – mais uma legislação polêmica, alvo de críticas, e que alterou substancialmente o ambiente societário. A nova legislação definiu o que são startups (empresas que aplicam a inovação no desenvolvimento de seus produtos e serviços), e ofertou àquelas que faturam até R$ 16 milhões por ano, e que possuem menos de dez anos de operação, um conjunto de benesses regulatórias.
Proteção aos investidores em startups: A legislação cita (e, portanto, reconhece como instrumentos válidos e eficazes do ponto de vista jurídico) uma série de instrumentos e estruturas de investimento que já eram utilizados por investidores e startups; mas agora garante aos investidores que utilizam esses instrumentos e estruturas que eles não serão responsabilizados por eventuais passivos da startup, inclusive afastando, expressamente, a aplicação de artigos do Código Civil, da CLT, do Código Tributário Nacional e do Código de Defesa do Consumidor que dispunham sobre a desconsideração da personalidade jurídica e responsabilização dos sócios por passivos da empresa [2].
Repasses às startups: O Marco Legal das Startups também disciplina o investimento em startups, inclusive por meio de FIPs e outros veículos, como forma de cumprimento de obrigações de investimento em tecnologia e inovação em decorrência de outorgas e delegações do Poder Público.
Publicações empresariais: O Marco Legal da Startups, regulamentado por ato do Ministério da Econômica, dispensou as sociedades anônimas de determinadas publicações em diário oficial e jornal de grande circulação que eram, até então, obrigatórias. Com isso, pretende-se reduzir burocracias e custos para as sociedades anônimas com faturamento anual de até R$ 78 milhões de reais.
Notas
[1] Em nossa pesquisa, encontramos vedação do voto plural no Decreto-Lei 2.627, de 1940, promulgada por Getúlio Vargas. A legislação que anteriormente regia as sociedades, a exemplo do Código Comercial de 1850 e da Lei 1.083, de 1860, era silente sobre o voto plural.
[2] O que, a nossa ver, pode ser uma cilada: se afasta expressamente a aplicação desses artigos para essas estruturas de investimento, mas não afasta para outras, então, é cabível a – incorreta – interpretação de que nos demais casos não se pode afastar a responsabilização. Ou a ainda mais incorreta interpretação de que, se esses artigos não se aplicam, então a responsabilização do investidor deve seguir caminho sui generis, automático ou facilitado.
Publicado em Estadão